sexta-feira, 27 de julho de 2007

POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Carlos Drummond de Andrade
Memória
Amar o perdidodeixa confundidoeste coração.Nada pode o olvidocontra o sem sentidoapelo do Não.As coisas tangíveistornam-se insensíveisà palma da mãoMas as coisas findasmuito mais que lindas,essas ficarão.

Ao Amor Antigo
O amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de presença.Nada exige nem pede. Nada espera,mas do destino vão nega a sentença.O amor antigo tem raízes fundas,feitas de sofrimento e de beleza.Por aquelas mergulha no infinito,e por estas suplanta a natureza.Se em toda parte o tempo desmoronaaquilo que foi grande e deslumbrante,a antigo amor, porém, nunca fenecee a cada dia surge mais amante.Mais ardente, mas pobre de esperança.Mais triste? Não. Ele venceu a dor,e resplandece no seu canto obscuro,tanto mais velho quanto mais amor.
Ainda que mal
Ainda que mal pergunte, ainda que mal respondas; ainda que mal te entenda, ainda que mal repitas; ainda que mal insista, ainda que mal desculpes; ainda que mal me exprima, ainda que mal me julgues; ainda que mal me mostre, ainda que mal me vejas; ainda que mal te encare, ainda que mal te furtes; ainda que mal te siga, ainda que mal te voltes; ainda que mal te ame, ainda que mal o saibas; ainda que mal te agarre, ainda que mal te mates; ainda assim te perguntoe me queimando em teu seio, me salvo e me dano: amor.
Não Passou
Passou? Minúsculas eternidadesdeglutidas por mínimos relógiosressoam na mente cavernosa.Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.A mão - a tua mão, nossas mãos -rugosas, têm o antigo calorde quando éramos vivos. Éramos?Hoje somos mais vivos do que nunca.Mentira, estarmos sós.Nada, que eu sinta, passa realmente.É tudo ilusão de ter passado.
Sentimental
Ponho-me a escrever teu nomeCom letras de macarrão.No prato, a sopa esfria, cheia de escamase debruçados na mesa todos contemplamesse romântico trabalho.Desgraçadamente falta uma letra,uma letra somente para acabar teu nome !
- Está sonhando ?
Olhe que a sopa esfria !Eu estava sonhando ...E há em todas as consciências um cartaz amarelo:"Neste país é proibido sonhar."
A um ausente
Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar.Houve um pacto implícito que rompestee sem te despedires foste embora.Detonaste o pacto.Detonaste a vida geral, a comum aquiescênciade viver e explorar os rumos de obscuridadesem prazo sem consulta sem provocaçãoaté o limite das folhas caídas na hora de cair.Antecipaste a hora.Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si,o ato que não ousamos nem sabemos ousarporque depois dele não há nada?Tenho razão para sentir saudade de ti,de nossa convivência em falas camaradas,simples apertar de mãos, nem isso, vozmodulando sílabas conhecidas e banaisque eram sempre certeza e segurança.Sim, tenho saudades.Sim, acuso-te porque fizesteo não previsto nas leis da amizade e da naturezanem nos deixaste sequer o direito de indagarporque o fizeste, porque te foste.

Os Vinte Poemas
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros, ao longe".O vento da noite gira no céu e canta.Posso escrever os versos mais tristes esta noite.Eu a amei, e às vezes ela também me amou.Em noites como esta eu a tive entre os meus braços.Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.Ela me amou, às vezes eu também a amava.Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.Posso escrever os versos mais tristes esta noite.Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.Que importa que o meu amor não pudesse guardá-la.A noite está estrelada e ela não está comigo.Isso é tudo. Ao longe alguém canta.Ao longe. Minha alma não se contenta com tê-la perdido.Como para aproximá-la o meu olhar a procura.Meu coração a procura, e ela não está comigo.A mesma noite qeu fez branquear as mesmas árvores.Nós, os de então, já não somos os mesmos.Já não a amo, é verdade, mas quanto a amei.Minha voz procurava o vento para tocar o seu ouvido.De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame.É tão curto o amor, e é tão longe o esquecimento.Porque em noites como esta eu a tive entre os meus braços, a minha alma não se contenta com tê-la perdido.Ainda que esta seja a última dor que ela me causa, e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.
Amar
Que pode uma criatura senão,entre criaturas, amar?amar e esquecer,amar e malamar,amar, desamar, amar?sempre, e até de olhos vidrados amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,sozinho, em rotação universal, senãorodar também, e amar?amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,o que é entrega ou adoração expectante,e amar o inóspito, o cru,um vaso sem flor, um chão de ferro,e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma avede rapina.Este o nosso destino: amor sem conta,distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,doação ilimitada a uma completa ingratidão,e na concha vazia do amor a procura medrosa,paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossaamar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.